Espuma dos dias – Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita — Texto 13. A crise decisiva, a grande bifurcação e o fim da hiper-globalização financeira?  Por Olivier Passet

 

Nota de editor:

Com a atual guerra na Ucrânia e, em particular, com as sanções económicas e financeiras sobre a Rússia os comentaristas e analistas têm-se debruçado sobre as eventuais consequências de tais medidas sobre o estatuto do dólar enquanto moeda de reserva mundial e de moeda preferencial nas trocas internacionais. A propósito deste tema organizámos uma série de 13 textos, “Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita”.Publicamos hoje o décimo terceiro e último texto – “A crise decisiva, a grande bifurcação e o fim da hiper-globalização financeira?”de Olivier Passet.

Como resulta da leitura dos textos desta série, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional é um tema sobre o qual ninguém é capaz de dizer de seguro seja o que for. O resultado final da atual guerra na Ucrânia, que não se sabe quando terminará, nem como terminará, certamente influenciará a evolução do sistema monetário internacional e o papel do dólar no sistema, mas tão importante quanto a guerra em curso e a forma como terminará é igualmente saber qualquer será o comportamento dos beligerantes de peso, os EUA e a URSS no pós guerra. Os exemplos históricos assustam.

Neste contexto, perspetivar o futuro face ao enorme nevoeiro que se tem pela nossa frente é difícil. Disto mesmo damos conta pelos textos que publicamos onde se torna visível que o processo é influenciado por múltiplos fatores, nomeadamente decisões impossíveis de prever, o que tornam as previsões naquilo que verdadeiramente são: previsões.


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

8 m de leitura

Texto 13. A crise decisiva, a grande bifurcação e o fim da hiper-globalização financeira?

 Por Olivier Passet

Publicado por  em 16 de Maio de 2022 (original aqui)

 

Como com todas as grandes convulsões no mundo nos últimos 20 anos, o tema da mudança para uma nova era do capitalismo ressurgiu. Este foi o caso após o colapso da bolsa entre 2000 e 2003, que pareceu o dobrar dos sinos pela morte de uma economia bolha que sobrestimou as promessas de um mundo plano e hiper-fluido que tinha abolido as distâncias e cujas tecnologias de informação e comunicação abriram um horizonte de crescimento desmaterializado infinito. O mundo seguinte devia recentrar-se na indústria, reconstruir verdadeiros motores de produtividade e parar de mitificar a empresa sem fábricas e sem fronteiras.

Foi novamente o caso depois de 2007, que deveria pôr um fim à financeirização desenfreada que tinha levado o mundo à beira de uma falência sistémica. O mundo que se lhe seguiria seria um mundo de regulação e um regresso ao Estado.

É novamente o caso com a pandemia, onde nos é prometida uma era de revalorização da proximidade, rastreabilidade, circuitos curtos e o advento de um capitalismo social e ambientalmente responsável.

E é mais uma vez o caso com a guerra na Ucrânia, que anunciaria uma nova regionalização e uma maior segurança nas trocas internacionais, uma aceleração das agendas climáticas em nome da independência. A cada crise, a palavra relocalização regressa como um leitmotiv.

E de cada vez esta ideia alimenta a esperança de um regresso à realidade após várias décadas de exuberância, que se assemelharia a um grande Kondratieff, mas exclusivamente financeiro, patrimonial, desligado da economia real e que se teria mesmo desenvolvido em seu detrimento, com base numa deterioração das condições de trabalho (precariedade, polarização entre os não qualificados e os qualificados, rutura da ascensão social, enfraquecimento dos sindicatos, etc.); que teria concentrado os ganhos patrimoniais numa ínfima minoria; que teria relegado para segundo plano os desafios do bem-estar, carregando o cabaz de consumo com despesas restritas que teriam um fraco impacto libertador (ao contrário do automóvel ou do equipamento doméstico nos anos do pós-guerra): proliferação de sanções pecuniárias e, em particular, despesas relacionadas com a habitação, comunicação viciante, seguros, segurança, etc; um travão ao declínio secular do horário de trabalho, que antes da era da financeirização era visto como um sinal de progresso. Para não mencionar o nivelamento, ou mesmo a descida da esperança de vida nos países avançados, de populações empanturradas até à saciedade e expostas a riscos de saúde.

E é verdade que se nos mantivermos no registo da lógica dedutiva, mais do que nunca a transmutação do capitalismo parece inevitável.

Pensávamos que a inflação tinha sido definitivamente vencida… Que a relação preços-salários tinha sido relegada para o caixote do lixo da história, dada a relação de forças entre capital e trabalho… e eis que temos a inflação e os conflitos de partilha a voltarem ao primeiro plano das preocupações. A fase de desinflação, depois da grande moderação a taxas de juro zero, criando consideráveis oportunidades de alavancagem para a finança, chegou, portanto, ao fim. A finança terá de reaprender a viver com taxas de juro positivas.

Ao mesmo tempo, num cenário de declínio demográfico, a mão-de-obra está de novo a tornar-se um recurso escasso. A relação de forças desigual entre trabalho e capital está a ser reequilibrada, criando um novo potencial de conflitualidade dentro das empresas e recriando a necessidade de instâncias mediadoras para a resolver.

Pensávamos que a globalização do comércio de bens e capitais era um fenómeno pouco reversível, e agora, por razões de segurança de abastecimento de materiais críticos, e já não apenas por virtude social ou ecológica, as empresas devem levar a sério as questões da desglobalização, deslocalização, de circuitos curtos e de economia circular. Até agora, os grandes fundos de investimento prometiam encarregar-se da reorientação dos investimentos a fim de provocar alterações climáticas, e agora, em todo o lado, os Estados estão a retomar o controlo face à emergência. Deglobalização, planeamento, revalorização do trabalho, e sobriedade parecem ser a única saída para o impasse.

Mas, como disse no início, esta não é a primeira vez nos últimos 20 anos que nós ficamos seduzidos pela ideia de uma nova era. E em cada uma destas vezes este prognóstico transforma-se num fiasco. A tal ponto que a verdadeira questão hoje é a seguinte: com que nova artimanha da história pode uma crise que deveria dar um golpe fatal nos excessos loucos do capitalismo transformar-se num novo trampolim para uma hiperglobalização financeira e digital impermeável às questões climáticas?

Não há mais que ver os enormes lucros obtidos pelas grandes empresas de energia, o aumento dos projetos de construção nesta área, a formidável máquina de dinheiro que o episódio de inflação poderia representar para os gigantes digitais de custo fixo, e o efeito de amanhã do declínio dos preços das matérias-primas e das taxas de juro nos mercados bolsistas que voltariam a descolar com estrondo. Para assim compreender que nem os gigantes da gestão de fundos nem os gigantes digitais estão prestes a abandonar o seu controlo sobre a formação de um mundo que deve estar em conformidade com as suas fantasias antes de responderem ao interesse comum.

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O autor: Olivier Passet: diretor de sínteses económicas do Grupo Xerfi desde 2012. Foi conselheiro do presidente delegado do Conselho de Análise Económica (2011/2012), chefe do departamento de Economia e Finanças do Centro de Análise Estratégica (2006/2011). Tem o Diploma de Estudos Avançados em moeda, finanças e bancos pela Universidade Panthéon Sorbonne (Paris I).

 

 

 

 

 

 

 

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